Biografia

Edith Flusser e Vilém Flusser

Vilém Flusser nasceu no dia 12 de maio de 1920 na cidade de Praga, proveniente de uma família de intelectuais judeus. Seu pai, Gustav Flusser, era formado em matemática e física, professor da Universidade Carolina de Praga, membro do Partido Social-Democrata, tradutor e escritor. Sua mãe, Melitta Basch, judia de origem sefardita, era musicista e cantora.

Junto de sua irmã, Ludvika, Vilém Flusser foi educado tendo o alemão e o tcheco como línguas maternas, acrescidas do latim, grego e um pouco de hebraico, aprendidos nos estudos fundamentais. Por estas influências, ainda jovem inicia as primeiras tentativas de escrita, quando redige alguns poemas e uma peça de teatro intitulada Saul.

“Uma atmosfera espiritual e artisticamente inebriante de Praga entre as duas Guerras”, foi como Flusser descreveu sua infância e juventude em uma cidade que misturava as culturas alemã, tcheca e judaica. Foi neste cenário que conheceu Edith Barth, sua futura esposa, e onde ambos tiveram oportunidade de assistir à conferência de Martin Buber, Preconceito contra Deus, que os marcou profundamente.

Em 1938 cursa dois semestres de Filosofia na Universidade Carolina de Praga. Um curto período, pois no ano seguinte Flusser, Edith e a família de sua companheira fogem da cidade por consequência da invasão das tropas nazistas em Praga. Entre os anos de 39 e 40, estabelecem-se em Londres e Chagford, onde Flusser procura continuar seus estudos na London School of Economics and Political Science.

Ainda em 1940, Flusser e a família Barth emigram para o Brasil. Ao chegar no porto do Rio de Janeiro, Flusser descobre que seu pai havia sido assassinado pelos nazistas em Buchenwald. Sua mãe e irmã sofreram da mesma forma dois anos depois, quando executadas em Auschwitz, assim como seus avós e tios, levados para Theresienstadt e mortos em 1943.

No ano de 1941, casa-se com Edith Barth e tem sua primeira filha, Dinah. Mudam-se para São Paulo e, procurando estabelecer-se na cidade, Flusser trabalha na UNEX, firma de importação-exportação de seu sogro e do irmão dele, dividindo este tempo com os estudos de filosofia, levados de forma independente. Conhece Alex Bloch, judeu de Praga, com quem manteve estreita relação e correspondência por anos.

Em 1943, ano em que nasce seu segundo filho, Miguel Gustavo, Flusser sofre uma série de dilemas entre as suas interrogações filosóficas, a burocracia do trabalho comercial e a situação intelectual brasileira, considerada por ele como “isolada” e “estéril” em relação aos acontecimentos culturais e à profundidade reflexiva.

Este tumultuado momento existencial fez com Flusser se dedicasse à leitura dos autores místicos, ao Budismo e posteriormente a Martin Heidegger, Imannuel Kant e Ernst Cassirer, ao mesmo tempo em que procurava estabelecer contato com editoras e pensadores estadunidenses e europeus para publicar seus textos. Estas tentativas não obtiveram sucesso, justificadas pelo turbulento cenário pós guerra, o que fez Flusser intensificar sua escrita e a interlocução com Bloch.

Em 1951 nasce seu terceiro filho, Victor, mesmo período em que Flusser ainda procuraria o diálogo internacional, mas começando a estreitar o contato com alguns pensadores brasileiros. Dentre eles, Milton Vargas, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, que se tornaria um grande amigo e incentivador de suas ideias. Nesta década, Flusser se dedicou à escrita de suas primeiras obras (Das zwanzigste Jahrhundert, Die Geschichte des Teufels e A História do Diabo), e alguns ensaios publicados no Suplemento Literário do jornal Estado de São Paulo.

O contato com a cena intelectual brasileira se consolidou somente a partir do início da década de 60, quando Flusser entra em contato com o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e desenvolve amizade com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, a poeta Dora Ferreira da Silva e com Miguel Reale, filósofo de direito e fundador do IBF. Dali em diante seu círculo de relações amplia-se, publicando diversos artigos em revistas científicas e traduzindo textos, como de Haroldo de Campos, para o alemão, fase em que dedica-se sistematicamente à linguagem, o que gera, em 1963, a publicação de sua primeira obra Língua e Realidade.

Em função desta publicação e da notoriedade conseguida pelos ensaios, a década de 60 torna-se para Flusser um momento rico em possibilidades de desenvolver e divulgar seu pensamento. As reuniões em sua casa com os jovens intelectuais da época, as aulas ministradas na FAAP e no ITA, principalmente, e o início de suas atividades junto da Bienal de São Paulo, o consolidariam como importante referencial intelectual.

Por tal razão, em meados de 60, Flusser estabelece seus almejados contatos internacionais, ministrando cursos em importantes universidades e publicando seus primeiros textos em alemão, como Guimarães Rosa oder: Das Groβe Hinterland des Geistes (Guimarães Rosa ou: O Grande Sertão de Espírito). Sua permanência no Brasil, dividida com viagens esporádicas a Europa, se estenderia até 1972. Neste ano, em razão da preparação da XII Bienal de São Paulo, Edith e Vilém Flusser viajam para Europa e lá decidem permanecer. Seu balanço sobre este momento, em especial com a Bienal, viria a ser resumido da seguinte forma: “A ideia é a de que não é a arte apenas que está em crise, mas a sua comunicação com um público maior. Vamos tentar, pois, passar a ênfase das obras para o trabalho de grupo, e da exibição para o laboratório, e assim motivar a ativa reação do público”, em carta para Fred Forest.

Ainda que mantivesse contato com o Brasil, Flusser aprofunda suas relações européias e lá permanece, continuamente dedicando-se à escrita e palestras, em que apresenta o conceito de imagem técnica, como importante mudança de paradigma da cultura escrita para cultura imagética, principalmente no que se refere à tecnologia. Passa a escrever em inglês e francês, e por toda década de 70 empenha-se nos cursos e eventos de que era convidado nos Estados Unidos e diversos lugares da Europa.

Em 1983, publica Für eine Philosophie der Fotografie (Para uma filosofia da fotografia), sua primeira publicação em alemão, que se tornaria a mais popular de suas obras e traduzida para mais de vinte línguas. A recepção de sua obra, somada a sua produção crescente, fizeram com que Flusser consolidasse seu pensamento e influência nos expoentes estudos sobre as mídias que marcaram toda essa década. Sendo chamados para dezenas de congressos de referência, Edith e Vilém Flusser passavam mais tempo em viagem do que em sua casa em Robion, como declarariam, vendo expandirem as ideias de Vilém por toda Europa e tendo dezenas de textos e livros sendo publicados continuamente em diferentes idiomas.

Em novembro de 1991, Flusser ministra, no Goethe-Institut de Praga, uma palestra pela primeira vez em sua cidade natal sob o título Paradigmenwechse (Mudança de Paradigma). Em entrevista dada a Patrik Tshudin, comentando como era retornar à cidade que foi obrigado a abandonar em 1939, Flusser disse: “Então eu estava lá. E como andava pelas ruas – reconheci tudo. Nada me era estranho, mas não me reconheci. Nesse sentido, perdi para sempre os 19 ou 20 anos que vivi em Praga e que, para mim, foram fundamentais em minha formação”.

Em 27 de novembro de 1991, na viagem de volta de Praga, Vilém Flusser e sua esposa Edith sofrem um acidente de carro próximo à cidade de Bor, pouco antes da fronteira entre a República Tcheca e a Alemanha. Vilém Flusser falece em decorrência do acidente. Poucos dias depois, é enterrado no Novo Cemitério Judeu de Praga. Em 24 de outubro de 2014, Edith Flusser – que durante mais de vinte anos atuou com vivo engajamento como herdeira intelectual de seu marido – foi repousar no mesmo túmulo.

Em sua lápide, escrito em hebraico, tcheco e português, a seguinte inscrição: “Não morreremos conjugados. “Nós” nunca morreremos, porque apenas eu e tu, a solidão é para a morte”.

* As passagens aqui citadas foram retiradas da extensa correspondência de Flusser e de sua autobiografia, disponíveis no Arquivo São Paulo, e dos momentos apresentados na obra Flusseriana. An Intellectual Toobox, organizada por Peter Weibel e Siegfried Zielinski.